Querias roubar aquele disco ou aquela peça de roupa numa loja... Mas há um vigilante que te observa, ou um sistema de vigilância electrónica, ou tens simplesmente medo de ser apanhado, de ser punido, de ser condenado... Não é honestidade; é calculismo. Não é moral; é precaução. O medo da autoridade é o contrário da virtude, ou é apenas a virtude da prudência.
Imagina, pelo contrário, que tens esse anel de que fala Platão, o famoso anel de Giges que te torna invisível quando queres... É um anel mágico que um pastor encontrou por acaso. Basta rodar o anel e voltar o engaste para o lado da palma da mão para a pessoa se tornar totalmente invisível, e rodá-lo para o outro lado para voltar a ficar visível. Giges, que era um homem honesto, não soube resistir às tentações a que este anel o submetia: aproveitou os seus poderes mágicos para entrar no Palácio, seduzir a rainha, assassinar o rei, tomar o poder e exercê-lo em seu exclusivo benefício. Quem conta a história n' A República [uma das obras de Platão] conclui que o bom e o mau, ou supostos como tais, não se distinguem senão pela prudência ou pela hipocrisia ou, dito de outra maneira, pela importância desigual que atribuem ao olhar dos outros ou pela sua maior ou menor habilidade em se esconder... Possuíssem um e outro o anel de Giges e nada os distinguiria: «tenderiam ambos para o mesmo fim». Isto é sugerir que a moral não é senão uma ilusão, um engano, um medo disfarçado de virtude. Bastaria podermos tornar-nos invisíveis para que qualquer interdição desaparecesse, e não houvesse senão a procura, por parte de cada um, do seu prazer ou do seu interesse egoístas.
Será isto verdade? Claro que Platão está convencido do contrário. Mas ninguém é obrigado a ser platónico... Para ti, a única resposta válida está em ti mesmo. Imagina, como experiência de pensamento, que tinhas esse anel. Que farias? Que não farias? Continuarias, por exemplo, a respeitar a propriedade dos outros, a sua intimidade, os seus segredos, a sua liberdade, a sua dignidade, a sua vida? Ninguém pode responder por ti: esta questão só a ti diz respeito, mas diz respeito a tudo o que tu és. Tudo aquilo que não fazes, mas que te permitirias se fosses invisível, releva menos da moral que da prudência ou da hipocrisia. Em contrapartida, aquilo que, mesmo invisível, continuarias a obrigar-te ou a proibir-te, não por interesse mas por dever, só isso é estritamente moral. A tua alma tem a sua pedra de toque. A tua moral tem a sua pedra de toque, pela qual te julgas a ti mesmo. A tua moral? Aquilo que exiges de ti, não em função do olhar dos outros ou desta ou daquela ameaça exterior, mas em nome de uma certa concepção do bem e do mal, do dever e do interdito, do admissível e do inadmissível, enfim, da humanidade e de ti. Concretamente: o conjunto das regras às quais te submeterias mesmo que fosses invisível e invencível.
O que é a moral? É o conjunto das coisas a que um indivíduo se obriga ou que proíbe a si mesmo, não para aumentar a sua felicidade ou o seu bem-estar, o que não passaria de egoísmo, mas para levar em conta os interesses ou os direitos do outro, para não ser um malvado, para permanecer fiel a uma certa ideia da humanidade e de si. A moral responde à questão “Que devo fazer?” — é o conjunto dos meus deveres, ou seja, dos imperativos que reconheço como legítimos —- mesmo que, como qualquer pessoa, ocasionalmente os viole. É a lei que imponho a mim mesmo, ou que deveria impor-me, independentemente do olhar do outro e de qualquer sanção ou recompensa esperadas.
(…) Se toda a gente mentisse, ninguém acreditava em ninguém: nem se poderia sequer mentir (pois a mentira supõe a própria confiança que viola) e qualquer comunicação se tornaria absurda ou vã.
Se toda a gente roubasse, a vida em sociedade tornar-se-ia impossível ou miserável: deixaria de haver propriedade, não haveria bem-estar para ninguém nem haveria nada para roubar...
Se toda a gente matasse, seria a humanidade ou a civilização que correriam para a sua perda: haveria apenas violência e medo, e seríamos todos vítimas dos assassinos que seríamos todos...
André COMTE-SPONVILLE - Apresentações da Filosofia, p. 27-35
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