19 abril 2007

O que é agir por dever?

«O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da reverência pela lei moral; e a maneira de testar se estamos a agir assim é procurar a máxima, ou princípio, com base na qual agimos, isto é, o imperativo ao qual as nossas acções se conformam. Há dois tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético afirma o seguinte: se quiseres atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos, porque há muitos fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só imperativo categórico, que é o seguinte: ‘Age apenas de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal’.
Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o devolver. Estou a agir segundo a máxima ‘Sempre que pensar que tenho pouco dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca o devolverei’. Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima, pois, nesse caso, toda a instituição da promessa sucumbiria. Assim, pedir dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.
Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a quem alguém em dificuldades peça ajuda, pode cair na tentação de responder ‘Que me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo.’ Esta pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada, porque pode surgir uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras.
Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização. Kant afirma que os dois casos correspondem a dois tipos diferentes de deveres: deveres estritos e deveres meritórios.
Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico: ‘Age de tal modo que trates sempre a humanidade, quer seja na tua pessoa quer na dos outros, nunca unicamente como meio, mas sempre ao mesmo tempo como um fim’. Kant pretende, apesar de não ter convencido muitos dos seus leitores, que este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar as mesmas conclusões práticas. Na verdade, é mais eficaz do que o anterior para expulsar o suicídio. Tirar a nossa própria vida, insiste Kant, é usar a nossa própria pessoa como um meio de acabar com o nosso desconforto e angústia.
Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo, sou um membro do reino dos fins, uma associação de seres racionais sob leis comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as suas máximas se possam transformar em leis universais. A conversa desta afirmação diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a minha. Um ser racional ‘só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no entanto, sejam universais’. No reino dos fins, todos somos igualmente legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.
Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um panegírico à dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da necessidade, e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. A moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço.
‘A moralidade, e a Humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem-querer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco’. As palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas pessoas hoje em dia.»

Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Ed. Temas e Debates, pp. 347-348

10 abril 2007

John Stuart Mill - o filósofo utilitarista

Filósofo e economista inglês, e um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX. Foi educado pelo pai de uma forma rígida evitando que se relacionasse com rapazes da mesma idade, visto que tinha o objectivo de fazer do seu filho um génio intelectual que iria assegurar a causa do utilitarismo e a sua implementação
Seus feitos em criança eram excepcionais: com três anos aprendeu o alfabeto grego e longas listas de palavras gregas com os correspondentes significados em inglês. Com a idade de oito anos tinha lido as fábulas de Esopo, a Anabasis de Xenofonte, toda a obra de Heródoto, e tinha conhecimento de Lúcio, Diógenes Laërtius, Isócrates e seis diálogos de Platão. Também tinha lido muito sobre a história de Inglaterra. Com oito anos começou com o latim, Euclides e álgebra e foi nomeado tutor dos membros mais jovens da família. As suas principais leituras eram ainda em história, mas ele leu também os autores em Latim e Grego lidos normalmente nas escolas e universidades do seu tempo. Com dezoito anos, descreveu a si mesmo como uma "máquina lógica" e, aos 21, sofreu uma depressão profunda. Levou muitos anos para recuperar a auto-estima.
Mais tarde, trabalhou na Companhia das Índias Orientais, lidando com a correspondência rotineira referente à actuação do governo inglês na Índia. Aos 25 anos, apaixonou-se por Harriet Tylor, uma mulher casada, que exerceu grande influência no trabalho de Stuart Mill.
Lutou pelos direitos das mulheres condenando a ideia da submissão sexual da esposa ao desejo do marido, contra a própria vontade, e a proibição do divórcio com base na incompatibilidade de génios. Sua concepção de casamento era baseada na parceria entre pessoas com os mesmos direitos, e não na relação mestre-escravo. Combatia a visão mecanicista de seu pai, ou seja, a visão da mente passiva que reage mediante o estímulo externo, visto que para si a mente exercia um papel activo na associação de ideias.
Escreveu incontáveis obras ao longo da sua vida, Destacando-se estas mais marcantes:
· Sistema de Lógica Dedutiva (1843);
· Princípios de Economia Política (1848);
· Liberdade (1859);
· Utilitarismo (1861);
· O Governo Representativo (1861);
· Sujeição das mulheres (1869);
· ...

Nuno Oliveira
10.ºD

05 abril 2007

Conhecimento e Justificação no Teeteto, de Platão

Platão foi um dos primeiros filósofos a distinguir a crença do
conhecimento. O Teeteto é um dos seus diálogos mais importantes.
Vejamos um extracto do Teeto:


Sócrates: Diz-me, então, qual a melhor definição que poderíamos dar de
conhecimento, para não nos contradizermos?
[...]
Teeteto: A de que a crença verdadeira é conhecimento? Certamente que
a crença verdadeira é infalível e tudo o que dela resulta é belo e bom.
[...]
Sócrates: O problema não exige um estudo prolongado, pois há uma
profissão que mostra bem como a crença verdadeira não é conhecimento.
Teeteto: Como é possível? Que profissão é essa?
Sócrates: A desses modelos de sabedoria a que se dá o nome de oradores
e advogados. Tais indivíduos, com a sua arte, produzem convicção, não
ensinando mas fazendo as pessoas acreditar no que quer que seja que eles
queiram que elas acreditem. Ou julgas tu que há mestres tão habilidosos
que, no pouco tempo concebido pela clepsidra sejam capazes de ensinar
devidamente a verdade acerca de um roubo ou qualquer outro crime a
ouvintes que não foram testemunhas do crime?
Teeteto: Não creio, de forma nenhuma. Eles não fazem senão persuadilos.
Sócrates: Mas para ti persuadir alguém não será levá-lo a acreditar em
algo?
Teeteto: Sem dúvida.
Sócrates: Então, quando há juízes que se acham justamente persuadidos
de factos que só uma testemunha ocular, e mais ninguém, pode saber, não
é verdade que, ao julgarem esses factos por ouvir dizer, depois de terem
formado deles uma crença verdadeira, pronunciam um juízo desprovido de
conhecimento, embora tendo uma convicção justa, se deram uma
sentença correcta?
Teeteto: Com certeza.
Sócrates: Mas, meu amigo, se a crença verdadeira e o conhecimento
fossem a mesma coisa, nunca o melhor dos juízes teria uma crença
verdadeira sem conhecimento. A verdade, porém, é que se trata de duas
coisas distintas.
Teeteto: Eu mesmo já ouvi alguém fazer essa distinção, Sócrates; tinha-me
esquecido dela, mas voltei a lembrar-me. Dizia essa pessoa que a
crença verdadeira acompanhada de razão (logos) é conhecimento e que
desprovida de razão (logos), a crença está fora do conhecimento [...].

Platão, Teeteto, 201a-c.

Aquilo que Platão designa por «logos» é o que tradicionalmente se passou
a designar «justificação». Assim, além de verdadeira, diz-nos Platão, a crença
tem de ser justificada, para que possa haver conhecimento.

Arte de Pensar
Didáctica Editora

O que é o conhecimento?

O conhecimento não é mera crença. Se o leitor acreditar e afirmar que sabe algo e alguém acreditar e afirmar que sabe o oposto, então pelo menos um de vós tem de estar enganado. Quando duas pessoas acreditam em coisas contraditórias não podem ambas saber aquilo que afirmam saber. Pois uma das duas crenças tem de ser falsa. Acreditar meramente em algo, não importa quão ardentemente, não faz disso uma verdade. Para que se saiba algo, não temos somente de acreditar nisso; isso também tem de ser verdade. Mas será isto tudo o que é requerido? É o conhecimento mera crença verdadeira?
Suponha-se que alguém aposta regularmente em cavalos. Ele tenta sempre apostar em vencedores, mas raramente o faz. Contudo, está tão cheio de ilusória autoconfiança que sempre que faz uma aposta acredita ardentemente que o seu cavalo vai ganhar. Nas raras ocasiões em que o cavalo ganha, saberia o apostador que o cavalo dele iria ganhar? Claro que não. Ele poderia sentir-se completamente confiante, mas isso é outra história. Para se saber algo, não se pode apenas adivinhá-lo, mesmo que se acerte, e não o sabemos por maior que seja a confiança que depositamos no nosso palpite. Assim, que mais é necessário para o conhecimento, além da crença verdadeira?
Não será ter provas a resposta? Isto é, para o leitor ter conhecimento não precisará de estar conectado com a verdade daquilo em que acredita através das provas ou razões que tem para acreditar nisso? E não terão essas razões ou provas de ser adequadas para justificar a sua crença? O que torna implausível dizer que o apostador tem conhecimento mesmo que aposte num cavalo vencedor é que ele não tem boas razões ou provas para pensar que o cavalo em que ele aposta irá ganhar. Em vez disso, o apostador ganha por sorte.
Mas o que é que são provas? Quando são as provas adequadas? Estas são perguntas difíceis. Para não nos desviarmos do nosso problema, pressuponha-se para efeitos de discussão que sabemos o que faz de um pedaço de informação uma prova a favor de uma certa crença. Pressuponha-se também que sabemos qual a quantidade de provas necessárias para sustentar adequadamente uma crença. E ao pressupor que sabemos esta última coisa, não elevemos demasiado as nossas exigências. Em vez de pressupor que para as provas serem adequados para o conhecimento terão de estabelecer conclusivamente a verdade da crença que suportam, pressuponha-se que as provas são adequadas quando tornam, nas circunstâncias em que existem, a verdade de uma crença mais provável do que o seu contrário. Se estes pressupostos estiverem errados, podemos sempre reformulá-los mais tarde. Aceitando-os por agora irá simplificar as questões e ajudar-nos a manter-nos na direcção certa.
O conhecimento pode ser mais (ou menos) do que mera crença suportada por provas adequadas. Mas se o conhecimento for pelo menos isso, então uma das coisas que devemos perguntar às nossas autoridades é que provas têm elas para as coisas que afirmam saber. E uma das coisas que temos de perguntar a nós próprios, quando aceitamos certas pessoas como autoridades, é que provas mostram que essas pessoas são competentes e fidedignas.

Daniel Kolak e Raymond Martin
Tradução de Célia Teixeira
Sabedoria sem Respostas: Uma Breve Introdução à Filosofia,
Temas e Debates, Lisboa, 2004, pp. 51-52.

De onde surge a filosofia?

Mesmo os nossos conceitos mais básicos não são claros para nós; usamo-los sem grandes problemas, mas não temos qualquer compreensão articulada do que envolvem. É aqui que a filosofia entra. E isto mostra que é um erro pensar que todas as questões genuínas são científicas ou empíricas. Na verdade, a própria ciência levanta problemas filosóficos.
O mesmo acontece com a literatura, a história, a economia, as ciências da computação, a matemática e assim por diante. Na matemática, por exemplo, há a questão de saber de onde vieram os números: será que são apenas marcas num papel, ou ideias na mente dos matemáticos? Será que são, como Platão pensava, entidades objectivas e independentes da mente que existem fora do espaço e do tempo? Nada daquilo que aprendemos numa aula normal de matemática nos pode dar a preparação necessária para responder a tais perguntas (apesar de os nossos professores de matemática poderem ter as suas ideias filosóficas sobre estas questões). Nas ciências empíricas, as teorias são criadas para explicar os dados que foram observados, e consideramos muitas vezes que estas teorias fornecem descrições correctas da realidade. Mas note-se que esta caracterização banal da ciência usa vários conceitos que precisam urgentemente de ser elucidados: o que é uma teoria? O que é uma explicação? O que distingue uma observação da teoria usada para a explicar? O que é a verdade? O que é a realidade? A ciência opera com estes conceitos, mas não tem recursos para os explicar. O mesmo acontece com as ciências sociais: também usam os conceitos que acabámos de referir, mas também invocam conceitos como o de razão ou motivo, assim como conceitos normativos como o de correcto e obrigatório — e estes conduzem-nos à filosofia moral e política, assim como à filosofia da mente. As artes empregam conceitos estéticos como os de beleza e representação, que levantam questões filosóficas: é a beleza subjectiva ou objectiva? Será que toda a representação artística é fundamentalmente do mesmo tipo? O que determina o valor estético de uma obra de arte? Depois há os conceitos extremamente gerais que surgem de súbito em todo o lado — tempo, causalidade, necessidade, existência, objecto, propriedade, identidade. Nenhuma disciplina científica nos pode dizer o que estes conceitos envolvem porque são pressupostos por quaisquer destas disciplinas; precisamos da filosofia para compreender estes conceitos. Por exemplo: é a causalidade simplesmente uma questão de simples conjunção constante de acontecimentos — de "um raio de coisa que se segue a outra", como A. J. Ayer costumava dizer — ou será que envolve um elemento de conexão necessária? E que tipo de necessidade poderá ser? Será qualquer coisa como a verdade necessária de "os solteiros não são casados"?
Estas são as perguntas que os seres humanos fazem naturalmente e acerca das quais têm estados perplexos desde que se registou pela primeira vez o pensamento articulado. As crianças fazem perguntas filosóficas espontaneamente, para grande frustração de seus pais — uma vez que os pais estão muitas vezes tão filosoficamente perdidos como os seus filhos. O filósofo é apenas alguém com interesses particularmente fortes sobre estas velhas questões universais; é a encarnação de um género de curiosidade humana — o género que procura o geral, e não o particular, que procura o abstracto e não o concreto. Claro que é fácil ficar impaciente com estas questões, pois não admitem resolução científica. Mas na verdade esta é uma resposta de filisteu combinada com fetiche científico. A ciência é sem dúvida uma tarefa importante e nobre, mas não é a única forma de investigação intelectual com valor. Não devemos abraçar a ideia de que uma pergunta ou é científica ou coisa nenhuma.

Colin McGinn - Tradução de Célia Teixeira

(Retirado de "Como se faz um Filósofo", de Colin McGinn (Lisboa: Bizâncio, 2007)

Programação das AULAS DE FILOSOFIA - RTP Madeira com o Prof. Rolando Almeida

Podes aceder às aulas de Filosofia da RTP Madeira, lecionadas pelo Prof. Rolando Almeida (na foto), acedendo aos links abaixo.  TELENSINO (R...