12 fevereiro 2008

Hierarquizar valores

Não sei se tens lido muito a Bíblia. Está cheia de coisas interessan­tes e não é preciso ser-se muito religioso - bem sabes que o sou muito pouco - para as apreciar. No primeiro dos livros da Bíblia, o Génesis, conta-se a história de Esaú e Jacob, filhos de Isaac. Eram irmãos gémeos, mas Esaú fora o primeiro a sair do ventre da mãe, o que lhe concedia o direito de primogenitura: ser primogénito naqueles tempos não era coisa de somenos importância, porque significava a sorte de se herdarem todas as posses e privilégios do pai. Esaú gostava de ir à caça e de andar em busca de aventuras, enquanto Jacob preferia ficar em casa, confeccionando de quando em vez algumas delícias culinári­as. Um dia, Esaú voltou do campo cansado e faminto. Jacob preparara um suculento guisado de lentilhas, e o irmão, só de sentir o aroma do cozinhado, ficou cheio de água na boca. Apeteceu-lhe intensamente comer aquele prato e pediu a Jacob que o convidasse. O irmão cozi­nheiro disse-lhe que o faria com muito gosto, mas não grátis, antes, em troca do direito de primogenitura. Esaú pensou: «Agora o que me apetece são as lentilhas. A herança do meu pai é para daqui a muito tempo. Quem sabe? Talvez eu morra até antes dele!» E acedeu a trocar os seus futuros direitos de primogénito pelas saborosas lenti­lhas do presente. Deviam ter um cheiro esplêndido aquelas lentilhas!
Não é preciso dizer-te que mais tarde, com a pança já cheia, Esaú se arrependeu do mau negócio que tinha feito, o que provocou bastantes problemas entre os dois irmãos.
Esaú queria as lentilhas, esforçou-se por consegui-las e no fim ficou sem a herança. Belo resultado!» Sim, claro, mas... seriam as lentilhas o que Esaú queria deveras, ou não passavam do que lhe apetecia naquele momento? Afinal de contas, ser o primogénito era então uma coisa muito vantajosa, enquanto as lentilhas, bem vês: se quiseres comes, se quiseres deixas de parte... É lógico pensar que aquilo que Esaú, no fundo, queria era a primogenitura, um direito que prometia tomar-lhe a vida muito melhor dentro de um prazo mais ou menos curto. Evidente­mente, também lhe apetecia comer o guisado, mas, se se tivesse dado ao trabalho de pensar um bocadinho, ter-se-ia dado conta de que esse segundo desejo poderia esperar um pouco, sem que ele tivesse de comprometer as suas possibilidades de conseguir o fundamental.
Nós, seres humanos, queremos às vezes coisas contraditórias, que entram em conflito umas com as outras. É importante sermos capazes de estabelecer prioridades e de impor uma certa hierarquia entre o que me apetece no imediato e aquilo que, no fundo, a longo prazo, quero. Quem o não perceber à primeira, pode perguntar a Esaú...
Apetecem-te com certeza muitas coisas, amiúde contraditórias, como acontece com toda a gente: queres ter uma moto mas não queres partir a cabeça no asfalto, queres ter amigos mas sem perderes a tua independência, queres ter dinheiro mas não queres sujeitar-te ao próximo para o conseguires, queres saber coisas, e por isso compreendes que é preciso estudar, mas também queres divertir-te, queres que eu não te chateie e te deixe viver à tua maneira, mas também que esteja presente para te ajudar quando necessitas disso, etc. Numa palavra, se tivesses que resumir tudo isto e pôr sinceramente em palavras o teu desejo global e mais profundo, dir-me-ias: «olha, pai, o que eu quero é ter uma vida boa.» Bravo! O prémio para este senhor!
O que é bom é usarmos os prazeres, ou seja, termos sempre certo controlo sobre eles, não lhes permitindo que se voltem contra o mais que forma a tua existência pessoal. Lembra-te de como há umas largas páginas atrás, a propósito de Esaú e das suas lentilhas, falámos da complexidade da vida e de como era recomendável, para a vivermos bem, não a simplificarmos em excesso. O prazer é muito agradável, mas tem uma aborrecida tendência para a exclusividade: se te entregares a ele com demasiada generosidade, ele é muito capaz de te deixar sem nada a pretexto de te satisfazer. Usar os prazeres, como diz Montaigne, é não permitir que qualquer deles apague a possibilidade de todos os outros.

Ética para um Jovem, Fernando Savater, Gradiva
(pags. 55,56 e 105)

1 comentário:

Cátia Oliveira disse...

A qui está uma bela liçao........pensa sempre duas vezes naquilo que desejas.... e toma cuidado para que o que tu queres no presente nao te estrague a tua vida no futuro. Pois pode saber bem no momento mas depois quando acaba, acabou e nao podes voltar a tras com a tua escolha.....


(Ps. mas nao deixes de viver a tua vida, aproveita tudo ao maximo pois ela é muito curta, e se nao aproveitas agora depois pode ser tarde de mais.)

Programação das AULAS DE FILOSOFIA - RTP Madeira com o Prof. Rolando Almeida

Podes aceder às aulas de Filosofia da RTP Madeira, lecionadas pelo Prof. Rolando Almeida (na foto), acedendo aos links abaixo.  TELENSINO (R...