17 março 2012

Dúvida Hiperbólica!


1. É, incontestavelmente, uma das figuras mais proeminentes da história do pensamento humano. Foi matemático, foi cientista e foi, sobretudo, um grande filósofo, tendo sido considerado o pai da filosofia moderna. Refiro-me a Descartes que viveu apenas 56 anos, mas teve tempo de viajar e aprender por muitos países da europa, num tempo e sociedade ainda tolhida pelo feudalismo, por regimes políticos absolutistas onde a liberdade, a criatividade e a descoberta eram ainda heresias sufocadas por uma Igreja Católica inquisitória que não olhava a meios para atingir os seus fins “sagrados”. É o único filósofo que se manteve, nos últimos 20 anos, insubstituível nos programas de filosofia do Ensino Secundário. Muitas vezes me interrogo porque é que filósofos como Descartes se mantêm como referências do conhecimento humano durante séculos (Descartes viveu entre 1596 e 1650). No entanto, há que reconhecer que além do seu importante contributo para matemática, a filosofia e a ciência Descartes teve outro mérito não menos importante: quis, no século XVII, reformar ou refundar todo o conhecimento humano. Este assentava em princípios escolásticos da idade média onde o espírito científico ou de investigação eram substituídos pelo ensino retórico e livresco. Descartes percebeu que, naquele tempo, era fundamental demolir o velho saber e reconstruir um “novo edifício do conhecimento” assente em bases sólidas. Para essa empreitada considerou fundamental como princípio metodológico a “dúvida” levada até às últimas consequências, sendo por isso considerada uma dúvida hiperbólica que punha em causa não só as crenças mais básicas do seu tempo mas também, por exemplo, a existência do mundo físico e, inclusivamente, a do próprio Descartes.

2. Há dias esteve em Portugal Michael Marmot*, professor catedrático especialista em Epidemiologia e Saúde Pública e director do Instituto Internacional para a Sociedade e Saúde na University College de Londres. Este investigador levantou várias questões decorrentes de estudos científicos credíveis que fragilizam a maioria das decisões políticas dos nossos governantes da atualidade. Vejamos alguns exemplos. Estudos comprovam que “por cada 1% na subida da taxa de desemprego, os suicídios crescem 0,8%”. Marmot sustenta também que o grupo social a que se pertence é determinante em termos de saúde ou de educação: "Se se for pobre e burro fica-se burro, se se for burro e rico recupera-se. Os genes não definem o destino, a envolvência social é determinante no futuro de qualquer indivíduo”. Estudos científicos comprovaram que “há diferenças entre um detentor de um doutoramento e o de um mestrado, o doutorado tem maior esperança de vida". Outro estudo apresentado por Marmot demonstra que há mais stress, por exemplo, num operário de uma fábrica do que num administrador de topo. Este "sabe que o que está a fazer é importante, há realização profissional, tem mais controlo sobre o seu trabalho”. O operário tem que pedir para ir à casa de banho, só tem que fazer o que lhe é dito, não tem qualquer controlo sobre o seu trabalho". Assim, este estudo veio desmentir a ideia de senso comum de que as funções de maior responsabilidade trazem consigo mais stress e, por isso, mais doença cardiovascular.

Marmot mostrou ainda um gráfico com uma escala que relaciona o grau de saúde mental com o tipo de vínculo laboral que se tem - dos que trabalhavam sem contrato, aos que têm trabalho temporário, aos que têm contrato a termo e os que estão integrados nos quadros. O estado de saúde mental é muito pior entre os que têm formas de trabalho mais precárias e alcança os melhores níveis entre os trabalhadores com estabilidade laboral. A precariedade laboral é causa de piores níveis de saúde mental. Este investigador apresentou também um estudo realizado em Glasgow que comprova que, naquela cidade, há uma diferença de 28 anos entre a esperança média de vida dos habitantes das partes mais pobres em relação às partes mais ricas.

3. O exemplo de Descartes e os estudos apresentados por Marmot demonstram que às vezes, em determinados momentos da história, é necessário fazer uma análise muito profunda aos fundamentos em que assentam as nossas crenças sobre o modo como conhecemos o mundo: o mundo físico mas também o mundo social. Que é necessário uma análise muito profunda, digo eu, aos pressupostos em que assentam muitas das teorias superiormente defendidas pelos nossos economistas, pelos nossos sociólogos, pelos nossos jornalistas, pelos nossos comentadores, pelos nossos políticos. São estes eternos “especialistas” em impostos, em finanças, em educação, em saúde, em justiça social que nos vêm formatando através dos Mass Media para as mesmas teorias que apresentam sempre os mesmos (embora desastrosos) resultados. As medidas de austeridade, de desinvestimento na educação, de desleixo pelo desemprego, de aniquilação dos apoios sociais, de precarização dos vínculos laborais são decisões que conduzem sempre à dilatação das desigualdades sociais, ao aumento dos suicídios, à diminuição da esperança média de vida dos mais pobres, ao aumento dos problemas de saúde mental e a um futuro cada vez pior dos mais pobres e desfavorecidos. Há fortes razões para uma dúvida “hiperbólica” cartesiana sobre o modo como a classe neoliberal lidera este país e respectivos paradigmas sociais em que assentam as suas decisões políticas. A menos que queiramos viver na “idade das trevas”.

*Dados consultados em www.publico.pt

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